No dia em que a Vista Alegre decidiu abrir o seu primeiro hotel, meia dúzia de metros ao lado da fábrica de onde saem cerca de 65 mil peças por dia, ficou claro: não ia ser preciso comprar quadros porque nas paredes ficaria a loiça.
Desde novembro de 2015, quem faz check in no Montebelo Vista Alegre, em Ílhavo, encontra figuras pinceladas pelos artistas da secção de pintura da fábrica em travessas e pratos pendurados por todo o lado, seja junto aos elevadores ou às mesas de cabeceira – até nos fraldários há loiças a servirem de decoração.
“Quem vier 72 vezes pode dormir em 72 quartos distintos, porque todos têm elementos diferentes”, diz António Machado Matos, diretor do hotel. A juntar a este número e aos três pisos do edifício moderno e luminoso assinado pelos arquitetos Tiago Araújo e Paula Fonseca Nunes, estão mais dez quartos dentro do Palácio Vista Alegre, que em tempos serviu de residência do fundador da fábrica e que foi integralmente recuperado para o efeito, com uma ligação interna para o hotel principal, feita numa escadaria em caracol, que é a verdadeira ponte entre o antigo e o moderno.
Sacudindo o pó às porcelanas, o fundador e proprietário original do palácio foi José Ferreira Pinto Basto, latifundiário e comerciante que trocou Lisboa por Ílhavo ao perceber o potencial da região em termos de matérias primas e de transporte, com o rio Boco que atualmente se vê de quase todos os quartos – e que é um dos braços da famosa ria de Aveiro – a servir de estrada. As ruínas descobertas durante as escavações para construir o hotel – e deixadas à vista, junto ao Bar Real Fábrica – não enganam: a Quinta Vista-Alegre da Ermida, assim chamada por causa de uma capela mas também da fonte cuja água deixaria com a vista alegre quem a bebesse, era rica em argila e também em caulino, o minério que “permite que a porcelana coza a altas temperaturas”, explica Filipa Quatorze, responsável pelas visitas à “grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos chímicos” que Pinto Basto fundou em 1824.
Embora a fábrica esteja vedada ao visitante comum, isto não significa que não seja possível viver o ambiente industrial e histórico da Vista Alegre quando se reserva uma noite no hotel de cinco estrelas – muito pelo contrário. Para além das loiças nas paredes, cada andar do empreendimento foi decorado com as várias fases da porcelana, dos moldes à pintura, e aquilo que se vê exposto pode também ser encomendado, como se o hotel fosse uma espécie de galeria. Logo à mão, a poucos metros de distância e no mesmo pátio espaçoso, estão também duas lojas da marca: uma premium, com as várias edições especiais à venda, e um outlet com algumas peças com pequenos defeitos a preços reduzidos (há ainda uma loja da Bordallo Pinheiro a poucos passos, marca igualmente detida pelo grupo Visabeira).
A par do palácio, todo o espaço fabril vizinho do hotel foi inserido no projeto de recuperação, da capela de Nossa Senhora da Penha de França – monumento nacional datado de 1693 –, ao bairro operário que, desde muito cedo, incluía um posto médico, teatro, escola, barbearia, equipa de futebol (o Sporting Clube Vista Alegre), corpo de bombeiros privativo e uma creche que atualmente serve de morada dos workshops onde os trabalhadores da fábrica ensinam
a meter as mãos na porcelana.
Maior montra de todas, em maio de 2016 foi inaugurado o Museu Vista Alegre para contar a história quase bicentenária da marca. Assim que se faz check in no hotel, cada hóspede recebe um voucher de entrada e pode até tentar marcar uma visita guiada (a partir de 4,90€ por pessoa). Desenvolvido em parceria com o Museu Nacional de Arte Antiga e construído a partir dos antigos fornos da fábrica – dois gigantes em tijolo burro que no século XIX demoravam sete dias a aquecer e em cujas chaminés desativadas as cegonhas fazem agora ninhos – “o museu conta a história da marca através de objetos, documentos, fotografias, desenhos técnicos e artísticos”, como resume a diretora, Filipa Quatorze. Logo ao início é um divertimento procurar os defeitos das primeiras peças onde se tentou descobrir a fórmula da porcelana, pelo meio aprende-se mais sobre a comunidade fabril e a vida social dos trabalhadores, e até ao fim é impossível não abrir a boca de espanto, seja perante os pratos feitos para Ronald Reagan e os príncipes Grace e Rainier do Mónaco, ou perante o serviço de café desenhado por Siza Vieira, e do qual existem apenas 150 exemplares. Nos dias úteis há ainda um bónus: uma parede envidraçada que permite espreitar para dentro da fábrica e ver os pintores a trabalharem nas edições limitadas.
De volta ao hotel, há spa à disposição dos hóspedes, piscina exterior e interior, sauna, jacuzzi e banho turco. E os pratos não estão apenas nas paredes – estão também nas mesas. A carta do restaurante Vista Alegre serve cozinha tradicional portuguesa com apresentação de autor, alguns pratos internacionais e o obrigatório bacalhau à portuguesa, ou não fosse Ílhavo considerada a capital deste peixe. Mais ou menos reinventados, todos os pratos são servidos, como não poderia deixar de ser, num serviço de mesa… Vista Alegre.